domingo, 4 de outubro de 2015

Ninguém te deu nada

Ninguém te deu nada, sabes disso.
E entende-lo melhor cada manhã
quando abres teu vazio aos primeiros
raios de sol. Então agradeces
ter só por herança os sentidos 
para esse instante alado de pardais 
ao despertar, esse aroma florido
da brisa mais matutina.
E entende-lo melhor. Sabes que o tempo
acabará com toda a pertença,
com tudo o que não se tem ainda,
até com essa luz que te inunda 
de sua clara verdade. Ninguém te dá
senão ordens, leis e conselhos
a seguir, a bem ou a mal;
tristezas nocturnas, frases feitas,
remédios inúteis contra o frio,
entre outras muitas vaidades.
Mas tu agradeces. Assim nunca
terás de tornar o recebido 
a cem por um. E entende-lo melhor
quando te lembras do dia em
que terás de te ir, deixando só
alguns versos como exemplo
de tua digna pobreza. Ninguém cumpre
mais desejos lá por ir de riqueza aos ombros, 
lá por ter seus bens a salvo
de um fracasso inoportuno.
Vive por isso em paz com teu vazio,
com a luz da manhã, com este aroma
de solidão em flor, com o silêncio que,
tal como tu, sem ninguém, dá fruto.


María Sanz (Trad. A.M.)

Encontrado aqui.

Imagem: "11 a. m." de Edward Hopper (1926)

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